Fernanda Ramos's profile

recantos - Canoas/RS 2021

Reminiscências Poéticas foi o Projeto executado através do Edital Criação e Formação
Diversidade das Culturas, realizado com recursos da Lei Aldir Blanc no14.017/20. O Projeto visava a elaboração de uma produção poética sobre as casas, devido às recomendações de isolamento social e medidas preventivas referentes a covid-19. A apresentação técnica de fotografias e textos de caráter poético pretendiam fomentar o olhar sensível e crítico aos cantos da casa com a finalidade primeira de serem expostos em plataformas digitais, principalmente no Instagram devido o seu grande alcance e, após a primeira exposição virtual, a amplificação dos textos em ensaios artísticos
frente a destinação de publicação dos livros físicos. Quatro artistas foram convidados a participar (Laura Theodosio, Mariah da Fonseca, Daniele Barbosa e Fernanda Ramos), além do artista proponente do projeto (Felipe Dias) para o envio de dez ensaios e dez fotografias. Nas palavras do proponente “As casas; âmbitos de vida, histórias e
memórias - são égides na conjuntura vigente - e frente a imprescindibilidade do isolamento social em decorrência da situação pandêmica que estamos experienciando, advém uma maior confluência entre elas e seus residentes. É o decurso dessa convergência que convém ao presente projeto: essa conjunção em que o período de tempo ocioso do indivíduo enseja uma aproximação com a residência, corrobora à condução de um olhar - sensível, leitor - aos cantos de casa. As casas são
espaços suscetíveis ao abandono e ao esquecimento - principalmente de pequenos espaços que integram uma estrutura que no geral é usufruída frequentemente - são esses os referidos espaços como os "cantos de casa", que mesmo próximos, não estão à vista - e não obstante são apinhados de subjetividade e benemerentes de um olhar sensível, propícios a emersão de algumas perspectivas do tempo transcorrido, memórias associadas ao espaço e/ou aos objetos ali presentes, e outras informações que só cabem à quem exerce a contemplação dos referidos espaços.”

Canto dos Olhos foi uma exposição virtual que ocorreu entre 14 de maio e 31 de agosto de 2021, com curadoria de Diogo dos Santos e realização de Felipe Dias. Os trabalhos visuais eram acompanhados de legendas poéticas que eram disponibilizados na conta do instagram @nyn.cultural, discorrendo sobre reflexões acerca do isolamento social dentro das casas.

Antologias [Poéticas] Pandêmicas foram os livros publicados pela Editora NYN, com
organização do proponente Felipe Dias. Os três ensaios dissertados pela artista Fernanda Ramos são “Corpo-casa”, “Decifra-me ou devoro-te” e “No interior de uma paisagem”.

No interior de uma paisagem, Fernanda Ramos
Na performance Entre minha boca e teu ouvido, de Claudia Paim, as experiências de
paisagem parecem estar nesse campo de impossibilidade da comunicação, na instabilidade das recordações e das narrativas, em uma incapacidade de se repetir a experiência da palavra. Penso em como as primeiras experiências de paisagem, na infância, no interior do Estado, moldaram meus desvios - lugares para fugir e retornar.
Eu tinha quatro anos quando conheci as paisagens de Piratini, no terceiro distrito da cidade. Visitamos as casas de três irmãs de minha avó. As atividades do campo cansavam os corpos dispostos depois de longas caminhadas que desfrutavam desse espaço infinitamente extenso, produzindo uma espécie de nostalgia.
As ânsias infantis pareciam dissolvidas na paisagem. Lembro de quere acordar cedo, antes do nascer do Sol, para acompanhar as preparações do café da manhã. Lembro do ranger da janela na casinha de barro e da neblina encobrindo as horas, as tonalidades azul-esverdeadas mudando lentamente da escuridão disforme para a luz. Tenho recordação do tédio dentro das casas em dias de chuva, em que ficava na janela a contar os segundos depois dos raios caírem no horizonte, esperando pelos trovões.
Desse lugar que, um dia, foi o lugar da infância de minha avó, tenho a lembrança de uma
banho refrescante no tanque em um pôr-do-sol laranja na área terrosa atrás da casinha, em um dia de verão. As crianças correndo ao redor de uma grande árvore. Naquele momento, pelas saudades que sentia de casa, lembro de compreender parcialmente esse distanciamento entre um lugar e outro, como um deslocamento no tempo pelos espaços.

Decifra-me ou devoro-te, Fernanda Ramos
Caminhei ao redor da casa para pensar os subterfúgios que guiam as constantes
movimentações internas. No pequeno muro que divide esse pátio do terreno ao lado, minha curiosidade irrompeu. E se eu atravessasse esse espaço? Neste lugar, quando eu era criança, havia uma casinha de madeira verde com poucas árvores, mas depois este espaço se esvaziou e agora uma pequena floresta ocupa todos os cantos e os espaços.
Penso nas casas abandonadas que encontrei nos meus caminhos... Havia uma casa no
interior de uma paisagem no campo que parecia repentinamente abandonada, interrompida após as paredes erguidas, sem portas ou janelas, somente espaços por onde os galhos passavam, as folhas caíam e as raízes cresciam entre as fendas de um tijolo e outro. A casa era engolida pela natureza e lentamente devorada pela atmosfera do lugar. Essa recorrente curiosidade de percorrer os espaços e ter os pensamentos em uma determinada ideia, objeto ou luar parece transformar as possibilidade de
interpretação em novos desvelamentos para as nossas fixações.
Dentro ou fora de casa irrompemos e/ou desaparecemos - absorvidos pelo trabalho das
descobertas. Muitas vezes, imagino caminhar por estas extensões terrenas com os pés descalços e desobstruir caminhos com as próprias mãos. De certa forma, no conhecimento destes deslocamentos podemos transpor os pensamentos para outros lugares, e também, entre afastamentos e aproximações - inaugurar outras formas de pensar estes lugares.

Corpo-casa, Fernanda Ramos
Conheci o mar, depois as ruínas e as paisagens. Minha primeira casa na cidade do Rio
Grande estava localizada em frente ao antigo cemitério. Nesse período marcado por uma série de movimentos contrários, eu oscilei entre o desenraizamento e o pertencimento; entre o familiar e o desconhecido meditando sobre a natureza da vida e da morte. Um dos símbolos do ciclo vida-morte-vida está na imagem da serpente, lagarto ou dragão que devora a própria cauda: Ouroboros. Morte como fim, vida como recomeço. A impiedosa natureza do tempo, sempre avante contempla silenciosamente essas transformações - trocando peles e cicatrizando feridas como um
corpo fraturado após a queda.
Este canto da casa, no canto do quarto, acomoda um lugar de costura para feridas abertas. Encontro no autorretrato um modo de reconhecer meu corpo nesse espaço. Pensava em colocar em evidência um pouco das minhas buscas em todas as casas: a luz que entra pelas janelas. Mas, tendo os poros abertos para essas luzes externas, eu volto os olhos cada vez mais para dentro da minha casa, meu corpo-casa. As imagens que percorrem esta casa imaginária feita de lembranças vagas têm seres fantasmáticos que entram e saem de cena e percorrem este palco reinventado. Debaixo da pele guardo sentimentos ambivalentes e tenho memórias turvas sobre as casas habitadas... A vaga sensação das presenças... A certeza das ausências... Encontro nas paredes da casa as texturas da pele. Sinto como se estivesse dissecando as memórias deste corpo-casa - casa intermediária entre a primeira e a última: o útero e o túmulo.


- Todas as fotografias e legendas podem ser encontradas na página do instagram;
- Todos os ensaios estão disponíveis para download no site da Editora NYN:
https://www.nyncultural.com.br/
https://www.instagram.com/nyn.cultural

Projeto executado através do Edital Criação e Formação Diversidade das Culturas
Realizado com recursos da Lei Aldir Blanc no14.017/20
recantos - Canoas/RS 2021
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